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Introdução e objetivos

 

Biopolíticas emergentes do parentesco, o gênero e a reprodução: TRIÁLOGOS desde o Sul é um projecto de investigação interdisciplinar sobre regulações emergentes do parentesco, o género e a reprodução. Centra-se em processos de inovação jurídica e nas reações políticas concomitantes que se desenvolvem no Brasil, Espanha e Portugal, a fim de oferecer uma abordagem comparativa singular e proporcionar reflexões teóricas empiricamente fundamentadas que sejam relevantes para os debates em curso nas intersecções entre estudos de género e estudos queer.

Em diálogo com a filosofia moral e política, a teoria feminista recente e os estudos queer têm mostrado a relevância das abordagens interdisciplinares aos estudos sobre biopolítica. Este é especialmente o caso quando se trata de campos em rápida evolução, tais como as  relações de parentesco emergentes, a forma como os regimes médico-legais afetam os projetos de vida das pessoas trans e o impacto das bioeconomias contemporâneas na esfera reprodutiva. Nesta densa intersecção entre as ciências sociais e as humanidades, a investigação proposta centra-se em três países pertencentes ao Sul europeu e global, cuja história recente tem sido marcada pela transição a regimes democráticos nos quais ocorreram profundas transformações da biopolítica do parentesco, género e reprodução num curto período de tempo. Neste sentido, a investigação proposta constitui uma resposta original às críticas que apelam a uma descentralização do enfoque no norte global a fim de manter o impulso político dos estudos sobre cidadania sexual e reprodutiva. Mais especificamente, o projeto consiste numa vertente principal, com foco no Brasil, e duas vertentes complementares que serão desenvolvidas através de estadias de investigação em Espanha e Portugal.

As três vertentes visam produzir debates empíricos sobre biopolíticas emergentes, com ênfase nas lógicas estatais (p.e., instituições políticas, políticas públicas, disposições legislativas e judiciais) implicadas nos campos inter-relacionados do parentesco, do género e da reprodução a medida que estas se desdobram através dos regulamentos emergentes de relações não-monogâmicas, da identidade de género e da reprodução assistida por terceiros. Resumidamente, o projeto envolve a combinação de investigação teórica com trabalho de campo destinado a recolher dados qualitativos sob a forma de entrevistas biográficas e de pessoas expertas, textos jurídicos, e discursos ativistas e políticos em qualquer meio. Esta será a base para abordar uma série de questões transversais, tais como o impacto das cruzadas contra a “ideologia do género”, partindo de uma leitura biopolítica original da noção de ordem pública. A distribuição resultante dos temas e locais é concebida para maximizar o impacto do triálogo transcontinental proposto nas intersecções entre as biopolíticas do parentesco, do género e da reprodução, através da lente interdisciplinar dos estudos de género e dos estudos queer.

Vertente 1 – Biopolíticas emergentes do parentesco

 

O reconhecimento de algumas dessas formas de interdependência humana a que nos referimos como parentesco em detrimento de outras é um dos meios pelos quais o Estado organiza o campo da sexualidade. A fim de explorar os contornos biopolíticos desta ligação, TRIALOGUES presta especial atenção ao reconhecimento estatal de relações não-monogâmicas, no entendimento de que ocupam uma posição estratégica em relação a uma multiplicidade de debates académicos e políticos a respeito dos privilégios do matrimônio e da família nuclear sobre uma  grande variedade de práticas relacionais; sobre as estruturas emergentes de parentesco resultantes de técnicas reprodutivas assistidas por terceiros; a influência duradoura das intimidades não-monogâmicas LGBTQ no direito da família; e o impacto das formas institucionalizadas de sexualidade e parentesco na regulação da intimidade em sentido amplo.

Nos últimos anos, o Brasil tem sido uma fonte frequente de notícias sobre questões relativas ao reconhecimento legal de relações não-monogâmicas, incluindo registros públicos de  relações poliafetivas e uma crescente jurisprudência sobre as estruturas familiares multiparentais. Estes processos de inovação jurídica atingiram um dos seus pontos culminantes com o acórdão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que proibiu a lavratura de registros de relações poliafetivas a nível estatal, no entendimento de que o reconhecimento a estas relações seria contra a ordem pública brasileira. Pouco depois, a retórica “anti-género” da direita global e a defesa dos valores familiares tradicionais, heterossexuais e monogâmicos culminaram o seu processo de institucionalização com a vitória do partido de extrema-direita nas eleições presidenciais. Quando tomadas em conjunto, o Brasil oferece uma imagem complexa e agonista da biopolítica do parentesco, sem paralelo noutros contextos nacionais.

Esta vertente implica a recolha de entrevistas durante a fase de acolhida do projeto pela Universidade Federal da Bahia. Serão realizadas entrevistas biográficas com dez participantes envolvidxs em relações não-monogâmicas, seguindo o Método Interpretativo Narrativo Biográfico (BNIM), no qual o investigador principal recebeu formação específica e tem utilizado desde 2014. Será dada especial atenção à participação de mulheres, pessoas LGBTQ, negras e indígenas, a fim de permitir uma discussão interseccional dos resultados. Adicionalmente, de cinco a dez entrevistas semiestruturadas serão realizadas com ativistas e especialistas em não-monogamias.

Vertente 2 – Biopolíticas emergentes do gênero

 

O gênero é uma categoria central de análise dos processos incorporados de subjetivação. A última edição do DSM-5 e, mais recentemente, o CID-11 da Organização Mundial da Saúde delineiam um modelo não patologizante de identidades trans e não binárias. Essa tendência despatologizante está contribuindo para as lutas ativistas em muitos países, o que está levando a um número crescente de ações legislativas baseadas no princípio da autodeterminação de gênero, ou seja, sem recorrer a nenhum diagnóstico médico ou psiquiátrico (por exemplo, Argentina em 2012 , Malta em 2015, Noruega em 2016 e Portugal em 2018). No entanto, a autodeterminação de gênero continua sendo a exceção e não a regra na União Europeia, e as regulamentações estatais da identidade de gênero continuam sendo uma fonte comum de violências administrativas, toda vez que as informações sobre o estado civil, incluindo marcas legais de gênero, pertencem à ordem pública do Estado-nação.

O reconhecimento legal da variação de dgênero na infância é um campo ainda mais controverso. No entanto, muitos países estão aplicando procedimentos que permitem o reconhecimento parcial ou total dos nomes e identidades de gênero escolhidos por crianças trans. Este é o caso da Espanha, onde uma série de leis regionais emergentes (por exemplo, a Lei de Identidade de Gênero da Andaluzia, a Lei de Expressão e Identidade de Gênero de Madri) atendem às demandas de crianças de gênero não conforme, sem importar a sua idade, de forma semelhante a outros países europeus, como Alemanha, Holanda e Irlanda. Ao mesmo tempo, determinadas formas de feminismo trans-excluyente e partidos políticos de extrema direita transformaram essas demandas em um campo de batalha cultural, incluindo intervenções em espaços públicos desprezando as infâncias trans e despertando todo tipo de pânicos morais em torno dos programas de formação e respeito à diversidade de gênero na infância, como parte central de suas campanhas políticas.

A pluralidade de atores políticos envolvidos nos sdebates públicos e acadêmicos torna as regulamentações que afetam as infâncias de gênero não conformes num contexto chave na hora de explorar as biopolíticas emergentes do gênero. O trabalho de campo correspondente a esta vertente, e as tarefas conexas, serão realizados durante uma estadia de três meses na Faculdade de Educação da Universidade Complutense de Madrid (UCM). Incluirá de cinco a dez entrevistas semiestruturadas com especialistas, incluindo ativistas e juristas. Será dada atenção especial à inclusão de infâncias de gênero neutro e fluido e outros gêneros não binários.

Vertente 3 – Biopolíticas emergentes da reprodução

 

As regulações estatais do campo reprodutivo possuem uma temporalidade própria, que constitui uma sólida infraestrutura de regulações sexuais e de gênero. O caso da gestação por substituição, em particular, suscita questionamentos sobre diversos aspetos bioéticos, que têm alimentado intensos debates públicos e acadêmicos em diversos países da União Europeia, tornando-se também fonte de múltiplos conflitos de Direito Internacional Privado derivados dos acordos transnacionais de gestação por substituição. Apesar da crescente polarização desses debates, as discussões sobre cidadania reprodutiva e bioética feminista em relação à subrogação gestacional são de grande interesse quando se trata de examinar o impacto das diferenças de classe, sexo, gênero e raça na biopolítica da reprodução em uma perspetiva transnacional.

No meio do debate internacional e após uma rápida expansão dos direitos reprodutivos que incluía a concessão de acesso a tecnologias reprodutivas para lésbicas e mulheres solteiras, Portugal aprovou uma regulamentação altruísta da gestação por substituição em agosto de 2016. No entanto, em junho de 2018, uma decisão do Tribunal Constitucional proibiu doações anônimas de gametas e lei de gestação por substituição, provocando uma reação conservadora no âmbito dos direitos reprodutivos que afetou aos acordos da gestação por substituição em andamento, juntamente com os projetos reprodutivos para casais de lésbicas e mulheres solteiras. No entanto, e após novo debate parlamentar, a lei da gestação por substituição foi aprovada novamente, com algumas variações, em julho de 2019.

Os argumentos sustentados nos debates públicos, as nuances da extensão dos direitos reprodutivos para diferentes grupos de pessoas em relação a várias tecnologias reprodutivas e o processo de implementação da nova lei da gestação por substituição pintam um quadro complexo da emergente biopolítica da reprodução. Ao centrar-se no caso português, TRIÁLOGOS segue o caminho da inovação jurídica na Europa de forma a fornecer ferramentas críticas para a análise da regulamentação emergente no campo reprodutivo. O trabalho de campo correspondente a esta linha será realizado durante uma estadia de três meses no ISCTE-IUL em Lisboa, onde o investigador realizará cinco a dez entrevistas semiestruturadas a políticos, ativistas e especialistas na área, escolhidas pela sua conhecimento técnico ou pelo seu envolvimento direto na aplicação da lei.

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