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Publicação

Genealogias monstruosas: reivindicando vidas e corporeidades queer [Chamada de artigos, 13 DE DEZEMBRO] - e-Cadernos CES

Pablo Pérez Navarro, Ana Cristina Santos, Ana Lúcia Santos, Joana Brilhante, Mara Pieri, Pedro Fidalgo

A focalização na figura do monstro emerge do lugar que historicamente ocupou para simbolizar os perigos dos desvios, das inversões, das ameaças sem nome à ordem social estabelecida. Mesmo antes dos anjos, os monstros eram retratados como mensageiros que antecipavam catástrofes, como tempestades e outros eventos dramáticos que eram difíceis de explicar (Santos, 2023). Monstros naturais, políticos ou morais, ilustram como a figura do “monstro” foi utilizada enquanto dispositivo para demonizar abjeções tanto internas como do Outro (Giuliani, 2021). Apenas um bom comportamento, a submissão às regras ou a fé numa entidade maior inexplicável, como a magia, a bruxaria ou a religião, poderiam evitar que as sociedades fossem tocadas pelos monstros (Santos, 2023). Ligando-nos a um passado que se revela no presente, a monstruosidade ainda hoje irrompe nos espaços liminares, nos interstícios da ontologia onde se afundam as tranquilizadoras premissas das lógicas de identidade. Manifestando-se nas áreas de confusão entre o sujeito e o objeto, entre a sanidade e a loucura, entre o desejo e a repugnância, entre a vida e a morte, o monstro é a fronteira que nos liga ao que mais queríamos distanciar. Quem poderia desejar, perguntava-nos Julia Kristeva (1982) em Powers of Horror, ocupar o lugar do abjeto, o lugar do monstro? A pergunta de Kristeva era retórica, dirigida a um coro que só poderia responder unânime: eu não, nós não, nunca, jamais. O monstro é sempre um Outro, paradigma de uma alteridade que se pretende inassimilável. Mas o que acontece quando invertemos essa cena interpelativa? Quando a pergunta parte do exterior, do lugar inominável reservado para o monstro? Quando se torna, por isso mesmo, urgente, inevitável, condição de possibilidade da sobrevivência? Quando o monstro é o corpo enfraquecido pela SIDA, que se manifesta com gritos na Catedral de Saint Patrick, em Nova Iorque, para romper um silêncio cúmplice e genocida? Quando o monstro é o corpo trans de Susan Stryker subindo ao palco em genderfuck drag para interromper a reunião anual da Associação Americana de Psiquiatria (Stryker, 1994)? Quando escrevemos e lemos, com Donna Haraway, “no ventre de um monstro grávido” (Haraway, 2004)? Quando o monstro é aquele “qui vous parle” (Preciado, 2019)? Quando o monstro somos “nós”? Será possível fazer do espaço da monstruosidade um refúgio, uma trincheira, um lar? A estranheza dos monstros – ou monstros como estranhos a um imaginado “nós” – faz parte da narrativa cultural que descarta a complexidade do que designamos por seres humanos, contribuindo para a divisão binária entre bom e mau, humano e animal, hetero e homo, cis e trans, silenciando tudo o que escondem as dicotomias, tudo o que existe a meio caminho. Em última análise, falar da figura dos monstros, hoje, confronta-nos com a necessidade de repensar o que é a humanidade, e quem é considerado ser humano num mundo inóspito para os corpos dissidentes da norma heterocentrada, da cisnormatividade, da branquitude, da família nuclear, da norma que fracassa, sempre insatisfeita, na sua tentativa de se incorporar em “nós”. O número temático pretende abraçar a monstruosidade no que ela oferece relativamente à desconstrução de binarismos e à celebração das diferenças corporais. Assim, o nosso objetivo é rastrear, lembrar e reivindicar monstros através de uma perspetiva queer. Queremos explorar os monstros como uma possível figura teórica para escapar das celebrações tradicionais da humanidade e abraçar as possibilidades oferecidas por contribuições interdisciplinares que cruzem fronteiras entre diferentes campos do conhecimento, incluindo – mas não se limitando a – os estudos queer, estudos crip e/ou sobre a deficiência, estudos sobre gordura, estudos gays e lésbicos, estudos trans, estudos sobre envelhecimento e memória, estudos decoloniais e pós-coloniais, e estudos sobre biopolítica/necropolítica, entre outros. Com esse objetivo, este convite à apresentação de artigos visa explorar tópicos como: Corporificações monstruosas Dissidência relacional, sexual e de género Envelhecimento LGBTQIA+ Vidas trans e identidades não binárias Corpos intersexo Pessoas refugiadas e solicitantes de asilo LGBTQIA+ Sexualidade e deficiência Trabalho sexual e abjeção social Estigma, contágio, sorologia: corpos (inter)pandémicos Práticas reprodutivas queer Direitos (des)humanos críticos Geografias queer A organização deste número é apoiada pelos projetos TRACE, REMEMBER e TRIALOGUES, desenvolvidos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A e-cadernos CES é uma publicação online, com acesso livre, que se baseia num sistema de avaliação por pares e é editada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Integra atualmente as seguintes bases de indexação: CAPES, DOAJ, EBSCO, ERIH Plus e Latindex. Para mais informações sobre a publicação consulte: https://journals.openedition.org/eces. Todos os textos devem ser originais e submetidos na sua versão completa, em língua portuguesa, inglesa, francesa ou castelhana. Podem ter até 60 mil caracteres no máximo (com espaços), incluindo notas e referências bibliográficas. Para a secção final @cetera, podem ser apresentados outros textos (até 35 mil caracteres), entrevistas e debates (até 25 mil caracteres) ou recensões críticas inéditas (máximo 5 mil caracteres). Os textos submetidos não podem corresponder, em todo ou em parte, a outro texto já publicado (em versão papel ou eletrónica) na língua em que se apresenta ou em qualquer outra língua nem estarem a ser propostos em simultâneo a qualquer outra publicação. As normas detalhadas para submissão dos textos estão disponíveis em https://journals.openedition.org/eces/804. As mensagens devem ser enviadas para e-cadernos@ces.uc.pt e indicar explicitamente que se referem ao número temático em questão – “Genealogias monstruosas”. Todos os contributos estarão sujeitos a um processo de arbitragem científica (double-blind peer review). Bibliografia Giuliani, Gaia (2021), Monsters, Catastrophes and The Anthropocene: A Postcolonial Critique. London/New York: Routledge. Haraway, Donna (2004), “The Promises of Monsters: A Regenerative Politics for Inappropiate/d Others”, The Haraway Reader. New York/London: Routledge, 63-124. Kristeva, Julia (1982), Powers of Horror. An Essay on Abjection. New York: Columbia University Press. Preciado, Paul B. (2020), Je suis un monstre qui vous parle : rapport pour une académie de psychanalystes. Paris: Grasset. Santos, Ana Cristina (2023), “Embodied Queer Epistemologies: A New Approach to (a Monstrous) Citizenship”, in Ana Cristina Santos (org.), LGBTQ + Intimacies in Southern Europe. Cham: Palgrave Macmillan, 77-98. Stryker, Susan (1994), “My Words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix: Performing Transgender Rage”, GLQ: A Journal of Gay and Lesbian Studies, 1, 237-254. DOI : 10.1215/10642684-1-3-237

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